segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Valorize a tradução e revisão dos livros de RPG!

Eu mal tive inglês na escola. Eu nunca fiz curso de inglês. Eu nunca fui para o exterior. Mas vira e mexe eu pego um livro de RPG recém-lançado, e percebo que a tradução e revisão estão piores do que aquele quebra-galho que eu fiz, totalmente baseado na minha leitura de livros de RPG ao longo de todos esses anos que eu jogo e narro. Por que isso ainda acontece?




Houve um tempo, que se recusa a nos deixar, que traduzir RPG gerava status. Os heróis da geração xerox se tornaram os tradutores da única editora que fazia o serviço. Sem opções, sem ter como adquirir o livro importado, livros pessimamente traduzidos e porcamente revisados foram aceitos como "padrão de qualidade" no mercado de RPG. Mas os tempos mudaram.

"The Sonhar", um clássico da falta de revisão


Uma pessoa como eu, que nunca fez um curso de inglês na vida, é capaz de aprender a língua na teimosia. Mas quem está disposto a pagar para ter o livro em português não está disposto a abrir mão da qualidade para uma tradução e revisão inferiores. O público quer que o livro em português tenha o mesmo conteúdo do livro em inglês, e isso só é possível com investimento em tradução e revisão.

Eu vejo todo mundo reclamando da qualidade depois do livro pronto. Mas quem se preocupou em cobrar da editora, antes do livro publicado, sobre quem estava responsável pelo serviço? Quem se dá ao trabalho de pedir referências dos trabalhos prévios da equipe de tradução e revisão? Quem questiona quanto estão pagando para essas pessoas fazerem o serviço?

Quando após um financiamento coletivo, o tradutor escolher "Portadores da Luz Interior" para traduzir "Stargazers" e "Andarilhos do Asfalto" para "Glass Walkers", lembre-se que você apoiou o projeto sem questionar o valor de tradução indicado pelo orçamento. 


Eu penso que o trabalho de uma pessoa deve ser remunerado de acordo, para que se possa ser cobrada qualidade. Em todas as áreas, a gente desconfia de quem cobra um valor muito baixo. Então por que as editoras querem economizar justamente com a tradução e a revisão, que são a parte mais importante do processo de trazer um livro para a nossa língua?

O site do Sindicato Nacional dos Tradutores trás uma tabela com valores de referência. O que significam esses valores? Eles definem o preço mínimo justo pelo serviço de tradução e de revisão com qualidade profissional. Há tradutores que cobram mais, e quanto maiores os valores, melhor deve ser o serviço. Mas grosso modo, uma editora jamais deveria pagar menos do que os valores de referência para os profissionais que estão fazendo o serviço mais importante do processo de trazer um livro para a nossa língua! E mais importante, deveriam desconfiar de valores muito abaixo dessa tabela, avaliando de forma rígida as pessoas que oferecessem um serviço por menor valor.

Para o consumidor final, há uma forma de calcular quanto do custo do livro que deveria ter sido pago na tradução e revisão, aproximadamente. No dia em que esse artigo está sendo escrito (28/13/2015), o valor de referência de uma lauda com 2100 caracteres era de R$ 34,00 para tradução e R$ 17,00 para revisão. Acabei de abrir o pdf do meu livro Numenera como exemplo. A página 7 é uma página sem imagens, apenas com texto. Copiei o texto e colei num editor. Mandei contar palavras, e essa única página deu mais de 5000 caracteres. Será que quem traduziu ganhou R$ 70,00 por essa página e quem revisou R$ 35,00?  Numenera é um livro com 418 páginas mas tem muitas imagens, então vamos imaginar por cima que o livro tenha 200 páginas de texto com 5000 caracteres cada. Seria um livro de um milhão de caracteres, ou 476,19 páginas de 2100 caracteres. Pela tabela, o tradutor deveria ganhar cerca de R$ 16,000,00 pelo serviço, e o revisor R$ 8.000,00. A editora deveria dispender R$ 24.000,00 para garantir serviços de qualidade profissional de tradução e revisão. Isso aumenta o valor final para financiar um livro? Não, isso faz com que o valor final seja compatível com um livro com a qualidade que o consumidor deseja. Estamos falando em custos reais para um serviço de qualidade profissional.

Nos financiamentos coletivos, fica fácil de ter uma ideia aproximada do cuidado que a editora está tendo com a tradução e revisão. Num livro A4 de 400 páginas podemos pensar em 400 páginas de tradução para ter uma ideia do custo final. Esse valor está muito acima do valor estimado para tradução no projeto de financiamento? Pergunte ao criador do projeto o motivo.

É claro, existem casos em que o próprio editor está fazendo o serviço de tradução, o que minimiza os custos. Foi o que aconteceu no Accursed da Retropunk, e o produto final ficou muito bom. A Pensamento Coletivo fez um trabalho excelente com o Jadepunk também. Ficaram muito melhores do que quando se contratou um fã para traduzir bem baratinho. Mas isso não é uma regra, especialmente para editoras com várias linhas em paralelo, que pretendam cumprir um calendário de lançamentos, e que para isso precisam de tradutores fazendo o serviço de forma ágil, sem perda de qualidade.

Por isso o importante para o consumidor de livros de RPG é questionar as editoras sobre o serviço de tradução e revisão. Quem está fazendo? Que trabalhos ele já publicou? Posso dar uma olhada no texto dele? O consumidor deve estar ciente das pessoas envolvidas, e escolher com responsabilidade se vai ou não comprar um produto ou participar de um financiamento tendo o seguinte em mente: que moral ele vai ter para cobrar qualidade se foi conivente com um orçamento que pagava um valor irrisório para tradução e revisão? Só vai ter moral para reclamar depois se antes de apoiar questionou os motivos disso e concordou com a resposta.

O ideal é que apenas tradutores profissionais sejam contratados, e que se pague o justo pelo trabalho deles. Se o tradutor e o revisor não forem profissionais, enquanto estiver fazendo o serviço para o qual ele foi contratado, ele se torna automaticamente um profissional. Prazos e qualidade só podem ser cobrados mediante pagamento justo.

Não adianta nada o consumidor reclamar da qualidade da tradução depois do produto pronto se ele for conivente com a editora pagando "trezentos contos pro amigo do blog tal" fazer a tradução que um profissional cobraria R$ 10.000,00. A tradução com qualidade profissional tem custos, mesmo que esteja sendo feita por um amador que manje muito bem do que está fazendo e que já tenha vasto portfólio de livros de RPG traduzidos no mercado.

Tradutor deveria ser sempre a função principal da pessoa, não um bico. Tradutores vivem de tradução, e a remuneração do tradutor deve ser compatível com isso.

Agora, um último ponto a ser tocado, que é o mais delicado: o ego do fã do sistema que acha que ele é a melhor escolha para a tradução do livro e chega na editora trazendo isso como currículo. A pessoa pode ter o melhor blog do mundo, pode ser referência para entendimento de regras e cenário. E pode ser também um péssimo tradutor. Já vi um monte de exemplos assim. Um monte de tradução de blog de trechos de livro que não passa de "jogar no tradutor do Google e dar uma arrumada". Isso não é traduzir. O currículo de tradutor são traduções impecáveis, não é o serviço em um blog, nem como moderador de fórum / grupo, muito menos o de narrador / mestre do jogo. Na hora da escolha da pessoa que vai traduzir, a experiência dele com aquele sistema é irrelevante. Como eu vou confiar num tradutor que tem um podcast se eu não sei nem a qualidade do texto escrito dele? Traduções e revisões podem depender mais do domínio da língua portuguesa do que do domínio do inglês.


Ué, mas não era Visão Interior?


Não é como se não existissem RPGistas que são excelentes tradutores, vários deles, inclusive, tradutores profissionais. Não é como se o tradutor e o revisor não pudesse fazer perguntas sobre detalhes específicos do jogo ou ter de fazer pesquisa para que a sua tradução saia boa. Pelo contrário, isso faz parte do serviço que está sendo pago. E também não é que de repente existe uma regra de que só tradutores profissionais e sindicalizados possam fazer o serviço, mas...


Enquanto as editoras que traduzem RPG não valorizarem o processo de tradução e revisão, que são os passos mais importantes para o produto de qualidade, teremos os mesmos erros sendo repetidos e mais e mais consumidores descontentes desistindo dos livros em português.




4 comentários:

  1. tem muitas traduções/revisões deixando a desejar no mercado de rpg, palavras nao traduzidas ou faltando geram uma má compreensao do texto atrapalhando a experiecia de jogo.

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  2. Mais uma vez graças a textos como este reforço para mim mesmo que sempre preciso visitar o blog da Graci, estou com você em todos os aspectos!

    É uma pena ver traduções fracas para o português, de partir o coração. Embora a tabela do SINTRA seja infame entre os tradutores e contratantes de tradutor com seus preços surreais (o praticado oscila por profissional, mas arrisco dizer que gira em torno de 50% do que o sindicato recomenda), o profissional tradutor está aí e tenho certeza que muitas das editoras de RPG consultaram muitos deles para cotar o valor. Os valores pedidos pelos profissionais assustam e a solução acaba sendo recorre ao amigo do blog tal como está no texto.

    Aí quando o tradutor contratado começa ele percebe a bucha e tem duas opções: Se esforça mais do que esperava para entregar um texto de qualidade, vai de qualquer jeito porque afinal são 300 e tralalá páginas para ontem.

    O resultado e a conduta das editoras só muda caso os clientes reclamem. Se o cliente aceita as falhas e da um desconto "pelo peioneirismo e boa vontade" de trazer o RPG para o Brasil, não há nada de errado em continuar com o mesmo processo.

    Não sou de nenhuma das editoras, mas acredito que a maioria esmagadora dos envolvidos profissionalmente na chegada de todos esses livros e sistemas não estão exatamente nadando em dinheiro. Junte a isso a onda de reclamação do valor do livro de RPG (50~130BRL) e vai perceber que encarecer o livro para contratar profissionais de tradução e revisão de CV rechonchudo não vale tanto a assim...

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  3. Tradução é realmente a parte mais importante, ela vai e ser o termômetro do seu trabalho.Optamos em reimprimir o 13a era e Numenera, não foi a toa. Um dos motivos de liberarmos o pdf antes de imprimir qualquer livro e de trabalharmos com pdf nesse nosso país em que a pirataria virtual predomina.

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  4. Como revisora do Jadepunk, agradeço pela menção. :)

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