domingo, 18 de outubro de 2015

[Opinião] Qual o jeito certo de interpretar um personagem de RPG?

Com a disseminação dos canais de vídeo de RPG, é cada vez mais comum que sessões inteiras sejam gravadas e disponibilizadas, a maioria gratuitamente, na internet. Elas tem seu papel, são importantes para que iniciantes ou pessoas com pouca experiência possam ver como outros grupos jogam. Mas é necessário ter cautela ao tomar esses vídeos como exemplo, pois aquilo que funciona para um grupo, pode não funcionar para o seu. Especialmente, no que diz respeito a estilos de interpretação de personagens de jogador e NPCs.





A expectativa:


Note a emoção em cada soldado, o medo, as emoções de Theoden em seu discurso, e como isso passa para cada um dos envolvidos. Isso está em seus semblantes, em suas vozes, na expressão corporal. Não é forçado, é natural. É como se cada ator ali, como jogadores de RPG, exprimisse as verdadeiras emoções dos seus personagens. Isso é interpretação em nível hard, intensa, que dá um arrepio, que toca no fundo.

O tipo de interpretação que vários vídeos de mesas de jogo mostram:


O Rei Arthur do Cálice Sagrado é um paspalho, e o filme é primoroso por causa disso. Mas temos de lembrar que é uma comédia. A interpretação é exagerada, caricata, estereotipada. Quando vê o poder do inimigo, o rei está se borrando de medo, mas só ficamos sabendo porque ele fala isso. Não entendemos seu medo em sua expressão facial nem no tom de voz.


Vamos comparar "O Senhor dos Anéis" com "Em busca do cálice sagrado" novamente:


O que dizer dessa cena? A frase do Gandalf é icônica, e a cena deixa quem não leu o livro arrasado. Novamente se pode ver as emoções no semblante dos personagens, mesmo daqueles que apenas observam. Em uma cena com nível alto de imersão e interpretação, espera-se que os jogadores estejam sentindo a mesma como os seus personagens, e expressando isso em seu rosto, seus gestos, sua postura, mesmo quando sentados em volta de uma mesa.

Agora vamos voltar ao Cálice Sagrado:



 (incluindo a dublagem nacional fanfarrona):





Ah, essa cena. Novamente as emoções e expressões faciais do Rei Arthur são primorosas, seu tom de voz aprofunda a cena... não, péra... Esse tipo de interpretação é o que se vê em muitos vídeos de mesas por aí. Não é lindo ver que o assistente do rei olha pra ele com a mesma cara que o jogador olha pro narrador quando o mesmo está descrevendo cenas? Cadê a emoção? E o Cavaleiro Negro não sente dor, assim como um personagem ferido em combate não sente. Ele não sente medo, ele se acha invencível, ele fala sempre no mesmo tom de voz. Ele nem rosto tem, o elmo faz com que não precisemos ver suas expressões faciais. Não soa familiar? Você já viu ou participou de uma mesa assim?

Monthy Phyton e o Cálice Sagrado é uma das melhores comédias já feitas, e certamente tem muito de RPG nesse filme. Mas você não deve interpretar como eles. Lembre-se: estão tirando um sarro da interpretação ruim nesse filme!





E que lindo seria se fosse possível trazer algo assim para as nossas mesas, não é mesmo? Algumas pessoas conseguem, mas a maioria não. Você não precisa ser um ator para jogar RPG! Você não precisa parecer um dragão, ter a voz de um dragão, se mover como um dragão, ser um dragão convincente mesmo em aparência humana, para interpretar um dragão. Você só precisa sentir que é um dragão naquele momento, e seu corpo, sua voz, seu semblante, dentro de suas limitações como pessoa, vai fazer o resto. As pessoas, desde que imersas em uma experiência e atentas a ela, transbordam empatia. A imersão no jogo faz com que aflorem as características do seu personagem, permite que você interprete com a alma, permite que os outros à sua volta percebam essas emoções do personagem. Você não se torna um ator, mas por um breve momento, se torna o personagem. E aqueles que estão à sua volta sentirão isso, e agirão de acordo, se se entregarem a essa imersão.

Se você estiver imerso no jogo, você não precisará mudar a sua voz. Não precisará fazer um sotaque. Não precisará forçar nada, fazer caretas, pensar em bater na mesa. As mudanças sutis que a emoção e a personalidade do personagem irão impor ao seu corpo serão suficientes para que os outros jogadores te vejam como personagem. Deixe que o personagem conduza o que você vai fazer. Não pense, não ensaie, não racionalize. Aja.

Não atue, seja!

Os atores de Monthy Phyton e o Cálice Sagrado atuam, artificialmente e de forma estereotipada, e isso dá o tom do filme. Você olha para uma cena qualquer dos filmes deles e identifica imediatamente "Monthy Phyton". Assim como alguns Mestres e Jogadores, que não importa que personagem esteja interpretando, o fazem de forma tão técnica e presa a normas que você logo identifica "O Fulano". Os atores de O Senhor dos Anéis e O Hobbit deixam seus personagens os guiarem. Você não acha que é o Bernard Hill, o Ian McKellen nem o Benedict Cumberbatch. Você não vê atores nem elenco, vê Theoden, Gandalf e Smaug. Como eles são profissionais, o resultado visual é espantoso.

O jeito certo de interpretar um personagem de RPG, na minha opinião, é não interpretar. No sentido de não se preocupar com vozes, gestos, expressões faciais e corporais que o seu personagem tem de fazer. Se você simplesmente sentir o personagem, se dedicar a ele, ele virá, de forma muito mais natural, sem parecer uma paródia. Ele se encaixará naturalmente dentro do estilo de jogo de seu grupo, seja ele mais teatral ou mais introspectivo. A imersão será muito maior, mesmo que para quem está de fora pareça que você não está interpretando. Não se importe com o que os outros pensem nem com o que vão falar, entregue-se ao jogo e à mesa. Isso é imersão nível hard no jogo.

Diferente de um filme, que é feito para ser assistido depois, e depende que pessoas que não estejam envolvidas na cena possam senti-la (e por isso precisa ser bastante teatral), a mesa de RPG é feita para e pelos jogadores que a compõem, para viver aquele momento único e passageiro de simulação e vivência de uma outra realidade, sendo outra pessoa. Se você, como Mestre ou Jogador, tocar as emoções dos demais personagens e junto com eles construir a história. Se você conseguir sorrir ou chorar ao se lembrar um ano depois do que aconteceu naquela mesa. Se você sentir saudades do seu personagem depois que a campanha acabou. Se algo assim acontecer, você interpretou o seu personagem do jeito certo.



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