sexta-feira, 2 de outubro de 2015

[Opinião] Por que a maioria dos personagens de RPG são órfãos?

Compartilharam no Facebook um texto intitulado "Por que mães morrem ou são ausentes nos contos de fadas?", e isso me deu a ideia de expor minhas opiniões a respeito do que leva as pessoas a criarem tantos personagens órfãos ou que perderam os pais antes do início da aventura, para os jogos de RPG.


Acho que todo mundo que joga RPG já criou um personagem órfão, em algum momento de suas vidas. Se não criou, pensou em criar. Penso em alguns motivos que levam os jogadores a isso. Alguns são bem óbvios e evidentes, outros nem tanto.

Hotaru no Haka



1. O órfão heroico que supera sozinho as dificuldades

Gangsta 


Esse é o arquétipo mais comum de órfãos, encontrado em literatura, filmes, animes, jogos, etc. Ao invés de ser um coitadinho, o órfão supera as expectativas e se torna alguém grande, um ponto fora da curva, um modelo. Em RPG, nossos personagens são os protagonistas. E baseando-se nesses personagens que são tão legais, muitas vezes os jogadores, querendo abraçar o protagonismo, fazem uso de personagens órfãos.




Shingeki no Kyojin
Você já notou o quanto esses órfãos literários são fantásticos? O quanto a sua história é trágica e ao mesmo tempo cheia de superação, o quanto ela foi capaz de moldar a personalidade, o caráter, e sim, a força corpórea e a vontade do personagem. Órfãos literários são protagonistas incríveis. Como eu quero que o meu personagem seja incrível, ser órfão já o torna incrível. Não preciso de muita coisa. Em algum momento do prelúdio o personagem perde os pais, e ao invés der um destino parecido com o das crianças de Hotaru no Haka (Túmulo dos Vagalumes), ele se torna o Batman! Se meu personagem for órfão, todo mundo vai relacionar ele com o Batman, e eu poderei brilhar sem muito esforço. Ou pelo menos é isso que muitas pessoas inconscientemente esperam, ao criar seus personagens órfãos para jogos de RPG.

É legal ser o Batman, mas diferente das histórias com um único protagonista, no RPG o grupo inteiro é protagonista. Será que criar um personagem para se destacar, mesmo que inconscientemente, não prejudica de certa forma a ideia de grupo? Será que não causará frustrações posteriores, tanto no jogador que criou o órfão protagonista, quanto no restante do grupo, devido às dificuldades de relacionamento entre esse personagem, acostumado a superar tudo sozinho, e os demais? É coisa para se pensar. 


2. Medo de ver a família do personagem sofrendo


Neon Genesis Evangelion


Esse é um outro caso bastante comum. É absolutamente normal ter carinho pelos nossos personagens. É natural desejar que eles tenham vidas plenas, ficar feliz com a alegria deles, sofrer com o sofrimento deles. Se fazemos isso com nosso personagem favorito de um livro ou série, por que não com uma criação nossa? E o que aconteceria, o que seria de nós, se víssemos nossas famílias reais sofrendo? O que aconteceria conosco se eles fossem usados como reféns, em chantagens, fossem colocados em situações perigosas? É bastante comum encontrar histórias onde a família do protagonista sofre muito, seja por causa das escolhas dele, ou por causa das falhas dele. A maioria das pessoas prefere não pensar nisso. 



Fullmetal Alchemist


Para evitar essa possibilidade, muitos jogadores criam órfãos. Alguns se redimem da responsabilidade, fazendo com que a família tenha partido sem que isso fosse culpa deles. Alguns personagens órfãos, entretanto, se sentem responsáveis pela perda anterior da família, e isso de certa forma serve de base para as suas motivações e comportamentos. 






Magi: The Labyrinth of Magic
Normalmente, na ficção, protagonistas órfãos, mesmo sem os pais, ainda possuem uma família. São adotados, ou crescem junto a irmãos, familiares ou num orfanato. Raramente os órfãos literários cresceram sozinhos. Geralmente, os solitários acabam virando vilões ou antagonistas, e na maior parte dos casos, eles acabam tendo um destino trágico. 





Aldnoah.Zero

Essas histórias mostram a necessidade da presença da família na formação do caráter, ou mais especificamente, os prejuízos de não se ter companhia e amor familiar. Em RPG, entretanto, é difícil ver personagens que mesmo não tendo os pais, ainda possuem uma família. Novamente, isso pode decorrer do medo de vê-los sofrer. Entretanto, perde-se uma grande oportunidade, tanto dramática quanto de crescimento do personagem, ao se abrir mão completamente do conceito familiar.




Donten ni Warau



Como seria se acontecesse algo com os seus irmãos e o seu personagem tivesse de lidar com isso? O que aconteceria se ele visse um familiar indo para o lado do inimigo? É mais fácil não pensar nisso, não é mesmo? É mais cômodo e seguro.






Zankyou no Terror


Além disso, os jogos de RPG versam sobre grupos de personagens agindo juntos. Muitas vezes carece no personagem que cresceu solitário, a empatia para conviver com os outros. Essa falta de empatia tanto pode ser trabalhada de forma positiva dentro do jogo, fazendo com que o personagem se esforce para aprender a conviver e se espante quando descobrir o que é o amor fraternal, quanto pode ser um grande problema para a aventura como um todo. A escolha depende apenas do jogador, mas as consequências irão permear o jogo todo.



3. A simulação da emancipação X não querer seguir o mesmo caminho dos pais

Terra Formars
Muitos personagens de RPG são criados por pessoas que ainda vivem com os pais e deles dependem financeiramente. Entretanto, os personagens de RPG costumam ser jovens e independentes. Carece a muitos jogadores a experiência da independência, e por isso o meio mais fácil para não quebrar muito a cabeça é criar personagens órfãos.

Esse é normalmente o caminho seguido por jogadores que criam personagens que mesmo órfãos, seguem a mesma carreira ou destino dos pais que se foram. Não por conformismo, mas por dever. E não há nada de errado nisso, o dever é uma das motivações mais "pesadas" para se colocar em um personagem. Mas era mesmo necessário que ele fosse órfão?



Ao no Exorcist



Por outro lado, há o desejo, inconsciente ou não, de não ser como os seus pais. De lutar contra um destino imposto ao personagem, o qual muitas vezes ele se torna ciente apenas no decorrer da história. Essa é uma outra faceta do dever. Se no caso anterior falávamos dos deveres para com a família, a luta contra a sua herança pode ser motivada pelo dever para com os amigos, a sociedade, para encontrar o seu papel no mundo. Isso também é parte da emancipação e crescimento dos personagens órfãos.




4. O desejo de ser diferente

Owari no Seraph




Para um jogador que possui uma família bem estruturada, criar um órfão é a oportunidade de viver uma experiência diferente. Além disso, é comum haver algum mistério envolvendo o passado desconhecido ou oculto desses órfãos, e o jogador pode estar interessado em trazer esses temas e experiências para o jogo.













E qual o papel do Mestre / Narrador no meio de tudo isso?

Kuroshitsuji (Black Butler)
Como mediador e responsável pela diversão de todos, o Mestre / Narrador deve entender as motivações por trás da criação de um personagem órfão, ajudando o jogador a aproveitar todas as oportunidades que um personagem desses trás ao jogo. Ele deve ser capaz de explorar a orfandade do personagem, não deixando que aquilo seja um mero detalhe do prelúdio. Se o personagem tem deficiências sociais geradas por este estado, o narrador deve criar condições para que essas sejam sanadas, e impedir que as mesmas atrapalhem a diversão dos outros personagens ou a interação do grupo. Fazer um órfão anti-social agir em grupo pode ser um desafio, mas com certeza vai além da exploração do prelúdio daquele personagem. Em certas circunstâncias, pode se tornar crucial para a continuidade do jogo.

Lacunas do prelúdio desse personagem podem ser exploradas, assim como lacunas nos prelúdios de todos os personagens envolvidos, para criar laços e relações entre esses prelúdios e a história a ser contada. Deve-se aproveitar as fragilidades dele para fortalecer o grupo.

E o que fazer com o excesso de órfãos em um grupo de jogo? Faça com que ser órfão tenha um significado e um peso dentro de sua crônica.


É errado ou condenável criar um personagem órfão?

Rokka no Yuusha
Claro que não, desde que se tenha em mente que no jogo todos os personagens de jogador serão os protagonistas, em igual nível de importância, e que a história será criada da interação entre esses personagens como grupo, e do grupo com o mundo de jogo. Para um órfão, o grupo provavelmente é a sua família, e não um bando de estranhos com os quais ele não deve se envolver. A criação desses laços pode ser parte do objetivo do jogador (embora o personagem resista a isso), e por isso, o jogador deve criar aberturas para que o envolvimento emocional entre os personagens aconteça.

As imagens desse artigo são de órfãos de animes / mangás (o nome da obra está na legenda das imagens), cada um deles com suas forças e fragilidades, motivações e medos. Todos eles são grandes personagens, com alta carga dramática, e vários deles tiveram um destino trágico relacionado a suas escolhas. Inspire-se neles e em tantos outros ao criar seus órfãos. Aprenda a diferenciar o que fazer e o que não fazer.



Um comentário:

  1. O primeiro grupo de RPG que joguei (já burro velho nessa época) compartilhou os backgrounds dos personagens antes de começar a campanha e eu vi que literalmente todo o grupo era composto por órfãos com histórias dramáticas.

    Decidi ser o comic relief do grupo e meu char nessa campanha era um halfling desmiolado enviado por seu pai pra ajudar um aliado e ver se consegue não ser um idiota, só pra variar... Boa parte dos personagens acabou se tornando cômica logo na primeira campanha, e os que não fizeram isso voluntariamente acabaram assim por acidente: o guerreiro sério com uma vida dura era amaldiçoado nos dados e não acertava nada, nunca, em hipótese nenhuma ("eu consigo negociar com o gigante, calma!" 2 minutos depois o gigante está usando ele como porrete para bater no grupo) e a assassina era interpretada por uma amiga nossa completamente aérea que nunca lembrava o que estava havendo ("a ação é sua" "hã? Ah, meto a faca nele!" "sério? Ele só perguntou se você quer cerveja ou vinho, você está dentro de uma taverna...")

    Era um grupo legal. hahaha

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